Muitos de nós, nas idas que vamos fazendo aos supermercados, teremos já deparado com um produto deslocado da sua prateleira de origem. Algo que se explica facilmente com o facto de alguém ter pegado nele com o objectivo de o comprar e, a certa altura do percurso no interior do retalhista, esse alguém arrependeu-se da escolha que fez momentos antes. Retirou o produto do carrinho ou do cesto e colocou-o na primeira prateleira que estava por ali, em geral, à distância de um braço, ainda que o correcto a fazer fosse recolocar o produto na sua prateleira original situada, algures, noutra zona do supermercado. E, devido a este desleixo, encontramos bolachas a conviver alegremente com as massas, na residência destas últimas. E encontramos detergente para a louça em agradável diálogo com uma vassoura. E até encontramos pão a desenvolver um monólogo na prateleira onde o café está estacionado. E lá vai ter de ir o funcionário do supermercado arrumar, novamente, o produto na prateleira correcta. Ele ou um colega dele, fazer uma tarefa que já havia sido feita anteriormente.
Por razões de facilidade organizativa e até de eficiência quanto ao processo de compra, juntando ainda diversas estratégias que empurram os consumidores num determinado percurso com vista a rentabilizar o espaço, os supermercados estão organizados e divididos em secções, contendo cada uma um determinado tipo de produto. Por outras palavras, não encontramos a secção do arroz encostada à secção do gel de banho. Portanto, parece-me um contra-senso e uma desarrumação desleixada deixar, por exemplo, uma lata de feijão no local onde está exposta a mostarda (que até pode preferir a companhia da maionese).
Parece-me mais do que claro que o correcto a fazer por parte dos consumidores que se arrependeram de ter colocado um determinado produto no carrinho ou no cesto, seja a devolução desse mesmo produto à sua prateleira de origem, nem que para isso tenham de percorrer uns tantos corredores. Parece-me esta ser uma atitude educada, responsável e até um acto de civismo. E mantém o supermercado organizado.
Mas se esta atitude é algo tão simples de executar, porque é que há gente que prefere largar o seu arrependimento na prateleira errada (só porque é a que está mais perto ou por qualquer outra razão)? Será que esses indivíduos, nas suas casas, largam as coisas num qualquer local e que se os visitarmos vamos encontrar cadernos no frigorífico, camisolas lavadas dentro do lava-louça e embalagens de manteiga dentro da banheira?
Não me parece que esse cenário possa existir nas suas casas, ainda que esses indivíduos possam não ser um exemplo no que respeita à arrumação e à ordem. Então, será que esses indivíduos só agem dessa forma quando estão fora de casa, nomeadamente em locais em que sabem que existe gente para os “servir”, no caso, sob a forma de funcionários de supermercado?
Todo este texto que vou debitando traz um cenário agregado, aquele em nos responsabilizamos pelos nossos actos. Ou, por outras palavras, aquele em que devemos ser responsáveis pelos nossos actos.
Claro está que largar um produto na prateleira errada não é uma situação grave e nem traz problemas de maior. Dá, obviamente, trabalho desnecessário aos funcionários do supermercado e cria uma situação de desarrumação e de desordem mas é algo que se resolve facilmente e rapidamente. Basta pegar no produto colocado na prateleira errada e recolocá-lo na correcta.
Há, porém, uma certa situação que ocorre em alguns indivíduos da espécie humana e que, provavelmente, apenas acontece quando nenhum outro humano está a olhar. Vou contar um caso que aconteceu comigo há uns tempos.
Caminhava eu a pé vindo já não sei de onde, quando vejo, um pouco adiante, um carro parado na berma da estrada. No interior, sentava-se uma pessoa no lugar do passageiro e mantinha aberta a sua porta. O condutor teria ido a algum lado porque o lugar estava vazio e não havia mais nenhum humano nas proximidades.
A pessoa que se sentava no lugar do passageiro ocupava-se de uma tarefa qualquer que a fazia olhar para baixo e movimentar um pouco os braços. De onde eu estava não me era possível visualizar o que estava a ser executado, ainda que eu estivesse a aproximar-me do local onde o automóvel estava parado.
De repente, essa pessoa atira para o chão o resultado da acção que desenvolvia no interior do carro e que era, afinal, rasgar uns papéis. Rasgou-os e atirou-os para o chão. E até havia um caixote do lixo a meia dúzia de metros de distância e um outro de recolha de papel para reciclagem um pouco mais longe. Mas essa pessoa decidiu que a melhor solução era atirá-los para o chão.
Mas eis que tal pessoa (uma mulher) levantou os olhos e viu a minha pessoa. E a minha pessoa olhou para ela e a minha pessoa olhou para o lixo dela e a minha pessoa tornou a olhar para ela. A sujadora percebeu que tinha sido vista a fazer o que não devia e muito rapidamente desviou os olhos, forçando-se a entreter com o smartphone.
Entretanto, chegou um homem, o marido suponho, que entrou no carro e seguiram ambos viagem. E os papéis rasgados continuaram no chão, no local para onde foram atirados.
Eu podia ter dito qualquer coisa à mulher, algo como “Não deite lixo para o chão” ou qualquer coisa semelhante, mas optei por nada dizer. No passado presenciei situações iguais, com humanos adultos a deitar lixo para o chão, e disse-lhes que há caixotes para o lixo ali ao lado. No entanto, a minha sugestão foi corrida com um “Não se meta na minha vida” ou “Eu é que sei o que faço” ou qualquer outra frase plena de imbecilidade. Portanto, desde esses tempos conturbados em que a minha sugestão foi varrida com um ataque verbal, prefiro manter-me calado e limito-me a observar. E, por vezes, até escrevo sobre o que observo. Assim, e no caso da mulher que deitou para o chão os papéis rasgados, fiquei calado e escrevo sobre o caso.
Mas a pergunta que eu faço, e nomeadamente no caso desta mulher e de outros humanos que agem como ela, é a seguinte: será que ela tinha deitado os papéis para o chão se houvesse mais humanos ali perto? (não nos esqueçamos que ela não me viu aproximar por estar concentrada na acção de rasgar os papéis e, ali à volta, mais ninguém havia, nem sequer o marido).
Será que alguns humanos só agem da forma incorrecta quando não há ninguém para os responsabilizar pelo acto?
É um pouco como um “se ninguém viu é porque não existe”. O que, a partir de uma determinada perspectiva, lembra aquela idade em que muitos de nós dizemos “Não fui eu que parti a jarra! Foi ele!”, apesar de termos sido nós a parti-la. É aquela idade em que estamos a querer responsabilizar os outros pelos nossos actos errados. Aquela idade em que nos queremos desresponsabilizar pelos nossos actos errados.
Será que a mulher que se sentava no automóvel teria deitado os papéis rasgados para o chão se o marido (ou qualquer outra pessoa) estivesse a ver? E será que, nos supermercados, quem deixa o produto na prateleira errada faria a mesma coisa se houvesse alguém a ver, em particular um funcionário ou o gerente do supermercado?
Não sei responder a essas perguntas. Certamente haverá quem o faça apenas quando está sozinho e haverá quem o faça quer quando está sozinho, quer quando não. Mas independentemente da resposta, estou bastante certo que a atitude de cada um quanto à auto-responsabilização dos seus actos (quer quando alguém vê, quer quando ninguém vê) diz muito acerca de si próprio.